O Planejamento Urbano E A Questao Fundiaria No Brasil

Urbanismo

O processo de urbanização no Brasil passa, nos últimos 28 anos, por fortes mudanças. A concentração da população urbana em poucas metrópoles, no entanto, é uma marca que se mantém, assim como se mantém e se aprofunda a desigualdade social que resulta em segregação territorial e crescimento de favelas.
Este artigo fornece dados sobre as precárias condições de moradia nas metrópoles sob o impacto da globalização e do baixo crescimento econômico dos últimos 30 anos.
Apesar do prestígio que detém na opinião pública, o planejamento urbano praticado no Brasil ao longo de sua história tem colaborado mais para a exclusão social do que para minimizar as desigualdades.
No centro desse aparente paradoxo está a importância que a propriedade fundiária e a imobiliária tem na formação da saciedade brasileira. O patrimonialismo constitui um obstáculo para a racionalização e a democratização no uso do solo e, em consequência, para um crescimento ambiental e socialmente sustentável.
Um dos primeiros passos para reverter esse processo seria dar visibilidade ao que hoje é oculto: a gigantesca dimensão da cidade ilegal ou informal e suas consequências sociais e ambientais. A universidade tem um papel fundamental tanto para disseminar uma leitura científica dessa realidade e de seus conflitos quanto para formar quadros técnicos e lideranças sociais para a solução desses problemas.

O Planejamento Urbano e a Questão Fundiária

Após séculos de um processo de urbanização concentrado na faixa litorâneo ou próximo a ela, em especial nas regiões Sul e Sudeste, o Brasil mostra sinais evidentes de mudanças no padrão de crescimento das cidades e migração interna rumo ao centro-oeste e ao Norte. O Brasil tinha, em 1970, cinco metrópoles com mais de 1 milhão de habitantes: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Salvador. Em 2000, a essas metrópoles somaram-se duas no centro-oeste (Brasília e Goiânia) e duas no Norte (Belém e Manaus), além de Porto Alegre, Curitiba e Fortaleza.
A descentralização da indústria, a partir do Sudeste, e a expansão do agronegócio e da exploração de minérios e madeira têm propiciado essas mudanças regionais – insuficientes, porém, para promover a superação da desigualdade regional. Embora tenha perdido importância relativa, o estado de São Paulo ainda responde por um terço do produto interno bruto (PIB) e cerca de 25% do emprego industrial do país(34% em 1970). Alguns estudiosos têm contestado os dados do Brasil urbano divulgados pelo instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para melhor aferir a dimensão da população urbana do país, independentemente da legislação municipal que define áreas urbanas e rurais, o Ministério solicitou ao IBGE uma recontagem dos dados, com base no censo demográfico de 2000, e esta mostrou 78% da população nacional morando em núcleos urbanos, dado bastante próximo aos dados anteriores do Instituto (81%). Há muito a debater sobre o conceito de cidade no Brasil e como classificar a população urbana, mas esse não é o propósito deste texto.
Outra característica de mudança no processo de urbanização constatada pelos censos do IBGE, a partir dos anos 90, é que as cidades de Porte médio, com população entre 100 mil e 500 mil habitantes, crescem mais do que as metrópoles. O país segue em um processo acelerado de urbanização, mas as metrópoles não detêm mais as maiores taxas de crescimento urbano (embora suas periferias, de modo geral, ainda cresçam a taxas significativas, em contraposição ao esvaziamento das áreas centrais). Vale Lembrar que 72% dos municípios brasileiros (cujas sedes são definidas por lei como cidades) têm menos de 20 mil habitantes e estão sofrendo esvaziamento.
Apesar das novidades, a concentração e a centralização de população em algumas metrópoles ainda são fortes. O censo de 2000 revelou que 32% da população – cerca de 55 milhões de pessoas – viviam nas 11 maiores metrópoles do país (que englobam 209 municípios). Tais metrópoles concentravam ainda 82% da população moradora em habitações subnormais (majoritariamente favelas) e 33% do déficit habitacional (percentual equivalente a 2.192.296 unidades). O déficit habitacional é dado pelo número de famílias que vivem em moradias inadequadas (com outras famílias, em cômodos alugados ou cedidos, ônus excessivo de aluguel ou em locais improvisados).
Na segunda metade do século 20 as cidades brasileiras, em especial as metrópoles, ganharam cerca de 120 milhões de novos habitantes. Alguns dos impactos desse rápido processo de urbanização sobre a sociedade brasileira são positivos. Vários indicadores sociais apresentam uma evolução favorável e muito dessa evolução se deve a integração das pessoas e famílias nas cidades. Os principais exemplos são a queda da mortalidade infantil (que passou de 150 mortos por mil nascidos vivos em 1940 para 29,6 por mil em 2000), o aumento da expectativa de vida (média de 40,7 anos em 1940 e de 70,5 em 2000), a queda na fertilidade (6,16 filhos por mulher em idade fértil em 1940 e 2,38 em 2000) e a melhora do nível de escolaridade (55,9% de analfabetos em 1940 e 13,6 em 2000). Foi notável também a ampliação do saneamento e da coleta de lixo domiciliar. No entanto, apesar dessa melhora, alguns desses indicadores ainda deixam muito a desejar, como relevam os dados do IBGE de 2000 sobre o saneamento ambiental: 45 milhões de pessoas, em todo o país, ainda vivem sem água potável, 83 milhões não têm esgoto e 14 milhões não tem o lixo coletado.
A evolução dos indicadores urbanísticos que refletem as reais condições de vida da população, por sua vez, é bastante negativa. São comuns a ocupação inadequada do solo (envolvendo áreas ambientalmente sensíveis, como margens de córregos, mangues, dunas, várzeas e matas), o crescimento acelerado de favelas (e de ocupações ilegais de modo geral), a ocorrência de enchentes (decorrentes da impermeabilização exagerada do solo e do comprometimento das linhas de drenagem) e de desmoronamentos com mortes (devido á ocupação inadequada de encostas), a degradação de recursos hídricos com esgotos e outros problemas.
È nas metrópoles que essas características se acentuam, ainda mais após as duas últimas décadas do século 20, quando o processo de urbanização foi acompanhado de queda no crescimento econômico e mesmo de recessão. Entre as décadas de 1940 e 1970 a economia brasileira cresceu á impressionante taxa de 7% ao ano, mas após esse período sofreu um declínio muito grande. Nos anos 80 e 90 o crescimento médio anual do país alcançou apenas 1,3% e 2,1% respectivamente – ou seja, sequer garantiu emprego a todos os jovens que atingiram, nesses períodos, a idade de ingresso no mercado de trabalho.
O forte crescimento econômico entre meados dos anos 40 e o final dos anos 70 amainou os efeitos da má distribuição de renda, uma característica histórica da sociedade brasileira. Nas décadas seguintes, a desaceleração da economia foi acompanhada de desemprego e de recuo das políticas publicas. O impacto sobre as cidades foi enorme. O novo contexto internacional e as políticas neoliberais vieram se implantar sobre uma base social profundamente desigual (os direitos universais do ‘Estado do bem-estar’ se aplicaram a uma parte restrita da sociedade) e marcada por relações políticas atrasadas (tradição de autoritarismo, clientelismo, patrimonialismo: direitos restritos e privatização da esfera pública).
A chamada globalização trouxe avanços tecnológicos inegáveis, como a redução de distâncias espaciais e temporais por meio, por exemplo, dos progressos nos meios de transporte e comunicação. Em relação ás políticas sociais, porém, representa um recuo. Nas cidades de países como o Brasil, a globalização veio acompanhada de desregulamentação e alteração dos serviços públicos decorrentes das privatizações, da guerra fiscal, do enfraquecimento do papel social do Estado e das políticas de ajuste econômico. Tais mudanças tiveram forte impacto sobre um território já parcialmente desregulado pela tradição de informalidade e descontrole, mostra a história do registro de terras no país. Trata-se de um território urbano fortemente segregado por um mercado imobiliário e de terras altamente restrito e especulativo, e por investimentos públicos que sempre foram aplicados de forma concentrada e socialmente regressiva.
O baixo crescimento econômico que se seguiu a 1980 acentuou as mazelas tipicamente urbanas e influiu nas grandes cidades: o desemprego e a violência. Esta era praticamente desconhecida no universo urbano, como um fenômeno generalizado, até o inicio dos anos 70.

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A Questão Fundiária

Diante desses problemas, o planejamento urbano tem sido invocado, em especial pela grande mídia, como a ferramenta capaz de dar grandes rumos para as cidades, visando a uma construção mais equilibrada. Esse prestígio que o planejamento urbano tem nos meios de comunicação – e, mais ainda, a figura do ‘plano diretor’ – revela, segundo o urbanista Flávio Villança, o desconhecimento dos conflitos de interesses que cercam a produção e o consumo das cidades. Entretanto, não é por falta de planos e leis que os problemas urbanos no Brasil têm se agravado. È muito freqüente constatar a existência de um conjunto de leis urbanísticas bastante complexas e detalhadas, mas aplicadas com alguma flexibilidade (que dependerá do fiscal de plantão) na ‘cidade oficial’ e ignoradas na ‘cidade informal’ (favelas e ocupações ilegais), já que ali o caráter regulador e policial (sobre o uso do solo) do Estado está ausente.
Queremos destacar o papel da renda fundiária ou imobiliária tanto como fonte de ganhos como uma das causas da carência de moradias no país. Os imóveis têm, nas cidades, um preço que depende das vantagens e oportunidades decorrentes da sua localização. Outros fatores podem influir nesse preço que depende das vantagens e oportunidades decorrentes da sua localização. Outros fatores podem influir nesse preço, entre eles a legislação urbanística de uso no solo, as características da vizinhança e aspectos simbólicos. O investimento público nas áreas próximas é um dos fatores que mais se refletem na valorização de imóveis. È por isso que os investimentos públicos e a legislação urbanística são objetos de uma luta surda, agressiva e pouco transparente nos governos e câmeras municipais.
Vamos analisar algumas situações exemplares dessa realidade, que nos permitem entender todas as demais. Palmas, capital do Estado do Tocantins (criado em 1988), tem apenas 15 anos e é uma cidade planejada. No entanto, a população que mora informalmente – fora do ‘plano piloto’, implantado conforme os preceitos do urbanismo modernista funcionalista – já é maior que a população residente na área planejada. Os terrenos situados no plano-piloto, servidos da infra-estrutura e serviços urbanos (terrenos públicos até pouco tempo atrás), estão em sua maior parte vazios e têm valorização constante, alimentando um grande negócio de proprietários privados. Parece contraditório, mas a prioridade é dada não a uma cidade eficiente para os interesses capitalistas (transporte mais barato e eficiente, moradia acessível, terrenos disponíveis para construções), mas aos interesses patrimonialistas ou ganhos individuais decorrentes da valorização fundiária. O processo de privatização da terra (originalmente pública) em cidades planejadas de acordo com os modelos modernistas, como Palmas, Brasília e Goiânia, é descrito pela urbanista Lúcia Moraes no livro a segregação planejada: Goiânia, Brasília e Palmas (2003).
Essa realidade permite constatar que a formalidade (ou seja, a produção da cidade dentro das normas legais nesse contexto de excessiva regulamentação, a qual é aplicada apenas em áreas restritas do território urbano), e não apenas o custo da terra decorrente da existência de infra-estrutura e serviços urbanos, é também responsável por expulsar e excluir grande parte da população. As leis de mercado não são as únicas causas dessa exclusão. Um dos conjuntos habitacionais que há quatro anos o poder público começou a construir em Palmas, mas para a população cuja renda é inferior a três salários mínimos por família, situa-se a longa distância de qualquer ocupação urbana, em uma área totalmente isolada – lembrando o que ocorria na África do Sul durante o período do apartheid, quando a população negra era proibida, por lei, de habitar as cidades dos brancos.
Outro exemplo interessante e revelador de que não basta planejamento urbano para resolver os problemas de uma cidade está na metrópole de Curitiba. O município de Curitiba é exemplo de planejamento urbano bem-sucedido, reconhecido no mundo inteiro. No entanto, com a aceleração do crescimento demográfico, surgiram invasões de terra em todo o entorno da região metropolitana (e mesmo na periferia do município), afetando até as áreas de proteção de mananciais – é a falta de alternativas de moradias em terras mais bem localizadas que leva a população pobre a invadir áreas de proteção ambiental.
Após décadas de debates acadêmicos sobre a questão fundiária, e levando em consideração o pouco progresso na agenda política brasileira, somos forçados a reconhecer um forte componente cultural nesse processo. Como explicar tamanha confusão no registro de propriedades? Como justificar que o mercado privado atenda menos de 30% da população brasileira que necessita de moradias? Como justificar, diante de tanta carência, tão vasto patrimônio fundiário urbano ocioso? Como justificar as dimensões da degradação ambiental causada pela ocupação ilegal decorrente da falta de alternativas de moradia para a maioria da população? Muitos desses problemas fartamente conhecidos e denunciados persistem sem solução e, o que é pior, sem visibilidade e sem reconhecimento nos legislativos, nos executivos, no judiciário e na mídia.
A retenção, nas cidades, de terras e imóveis edificados vazios é um dos motivos da carência habitacional e dos preços inacessíveis, como já foi destacado. Em alguns casos – Campo Grande (MS) e Palmas são exemplos -, as áreas vazias e servidas de infra-estrutura poderiam acomodar mais que o dobro da população dessas cidades. Em metrópoles mais antigas, por outro lado, ganha mais importância a quantidade de imóveis edificados, mas vazios. O número dessas construções, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, se aproxima do déficit habitacional de cada uma. E tais imóveis estão concentrados – seguindo tendências internacionais – nas áreas mais centrais e, portanto, com melhor infra-estrutura e maior oferta de serviços.
Em contraste com esse patrimônio construído ocioso, localizado em áreas centrais das metrópoles, as periferias pobres se expandem horizontalmente, seguindo um modelo que acarreta graves conseqüências para um país com poucos recursos para investir.

Conhecimento Traz Soluções

Nem todos os problemas apontados neste artigo são de fácil solução, mas uma nova postura das universidades brasileira (visando à formação de profissionais e pesquisadores) pode representar uma importante contribuição para mudanças.
O correto dimensionamento e a adequada qualificação dos problemas urbanos e de suas causa (o que implica melhorar as informações, o mapeamento e os cadastros sobre a realidade local), a maior visibilidade desses problemas na sociedade (as dimensões da ‘cidade informal’ são desconhecidas tanto pela população como pelo meio técnico) e a formação de agentes públicos e sociais (em especial funcionários municipais e lideranças dos movimentos sociais) são algumas das providências que ajudariam a mudar o que podemos chamar de ‘analfabetismo urbanístico’.
A falta de conhecimento sobre o uso e a ocupação do solo e o distanciamento da produção de idéias em relação à realidade das cidades (em especial no campo jurídico e ambiental, onde há uma abundante legislação não aplicada) constituem um universo caracterizado pelo que pode ser chamado de “idéias fora do lugar” (planos e leis bem intencionados, mas não aplicados ou excludentes) e “o lugar fora das idéias” (a imensa cidade ilegal para a qual a legislação e o planejamento urbano não têm propostas abrangentes) – expressões emprestadas dos sociólogos Roberto Schwarz e Francisco de Oliveira.
A produção e a disseminação (para a sociedade, as lideranças comunitárias e os administradores públicos) do conhecimento sobre a cidade real podem alimentar o debate democrático, ajudar na desconstrução de mitos, romper com a alienação e a falta de transparência administrativas, permitir a identificação dos interesses que influem nos investimentos públicos e reorientar a aplicação destes. Podem, enfim, dirigir a busca por soluções aplicáveis a problemas reais.
Nos últimos 20 anos, em especial com o fim do regime militar, muitas experiências de administração participativa bem-sucedidas ocorreram no Brasil. As mais conhecidas, inclusive internacionalmente, são as de orçamento participativo, em que a comunidade tem voz nas decisões sobre os gastos públicos. O conhecimento técnico brasileiro (Know How) em projetos de urbanização de favelas também é respeitado em outros países.
Esses avanços constituem uma tendência de mudança que, para se efetivar, exigirá um longo tempo. Essa tendência, porém, tem sido retardada pelos valores absolutos que cercam a propriedade da terra, não só no campo, mas também nas cidades. A legislação urbanística brasileira é bastante avançada – nos municípios, as leis que tratam de zoneamento e código de edificações são até excessivamente detalhistas. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001), com a definição da ‘função social’ da propriedade, prevista na constituição federal de 1988, é citado no mundo todo como um exemplo positivo. È preciso aplicar esse conceito, e isso exige vencer distâncias sem evitar os conflitos. Ao contrário, reconhecê-los é o primeiro passo para uma adequada solução, que deve necessariamente incluir a participação social.
Vale lembrar, por fim, que o Estatuto da Cidade institui a obrigatoriedade de planos diretores para todos os municípios com mais de 20mil habitantes até o prazo final de outubro de 2006. Desde o ano passado, uma ampla campanha de elaboração desses planos tem sido promovida pelo Ministério das cidades. Resta acompanhar qual será o saldo efetivo desses novos planos diretores, inspirados nessa nova legislação.

Fonte: Ciência Hoje, Revista de Divulgação Cientifica, vol.38. Nº. 227, Junho 2006(p.16-23).

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